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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O MAL, PARTE II - A DOUTRINA DOS DECRETOS

É comum em livros de teologia sistemática encontrarmos uma parte dedicada à doutrina dos decretos. Ela trata das decisões tomadas por Deus antes mesmo da criação do mundo. Tudo o que acontece na história é o resultado dessas decisões. Millard J. Erickson, teólogo batista, prefere usar o termo plano de Deus e não decretos, propondo uma mudança de conceito, não de conteúdo. Desde já, afirmo que esse post terá declarações difíceis de serem entendidas. Compartilho com vocês, assim, minha dificuldade de compreendê-las.

A Confissão de Fé de Westminster define a doutrina dos decretos em termos claros e chocantes. O capítulo 3.1,2 acha-se registrado: "Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho de sua própria vontade, Deus ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas” (grifo nosso). O capítulo 6.1 está escrito: “Nossos primeiros pais seduzidos pela astúcia e tentação de Satanás, pecaram ao comerem o fruto proibido. Segundo o seu sábio e santo conselho, foi Deus servido permitir este pecado deles, havendo determinado ordená-lo para a sua própria glória” (grifo nosso).

O teólogo brasileiro Franklin Ferreira assim se expressa sobre o assunto: “Deus é o princípio ativo e determinante de tudo o que acontece (actio efficax), sem, entretanto, haver nenhum envolvimento ético com o pecado, visto que o homem comete o pecado por sua livre agência” (o substituto calvinista para o livre-arbítrio). Sobre os pecados dos homens, ele afirma que ocorrem “de acordo com a predestinação e o propósito de Deus”, fazendo uso de At. 4.24-30 (falaremos desse texto mais adiante).

Wayne Grudem, teólogo americano, em sua teologia sistemática define a doutrina dos decretos como sendo “os divinos desígnios eternos por meio dos quais, antes da criação do mundo Ele determinou realizar tudo o que acontece” (GRUDEM, 1999, p. 262, grifo nosso). Erickson, nosso primeiro teólogo citado, afirma que o plano de Deus é “sua decisão eterna, tornando certa a concretização de todas as coisas que virão a acontecer” (ERICKSON, 1997, p. 144). “Tudo o que ocorre acontece por escolha de Deus e de acordo com sua vontade” (ERICKSON, 1997, p. 146).

Encontramos um determinado padrão nessas declarações: tudo o que acontece é o que deveria acontecer porque Deus assim o decretou. Isso não impede que Deus diga que o homem deveria agir de outra forma. Deus, em outras palavras, quer que aconteça aquilo que ele desaprova como evento ocorrido. O homem que pratica o mal comete pecado, mas ainda assim, cumpre a vontade divina em praticá-lo. Ou como disse Jhon Piper, em Deus Deseja Que Todos Sejam Salvos?: “Deus não peca em querer que o pecado aconteça” (PIPER, 2014, p. 59).

Minha única impressão diante de uma visão rígida da soberania de Deus como expressa nas declarações acima, é que o mal passa a ser sacralizado, justificado, embora não legalizado. Ou como se diz: “Deus sabe o que faz! ”. Esquece-se, com isso, que o pecado é em si mesmo inexplicável. Ou como bem disse Emil Brunner em O Escândalo do Cristianismo: “Quem quer que busque explicar o pecado, ou creia que o pode fazer, faz do pecado uma sina e abole o ato. O conceito bíblico de pecado é que é um feito irracional” (BRUNNER, 2009, p. 61).

Piper serve muito bem de exemplo daqueles que enxergam a soberania de Deus pela ótica da decisão meticulosa de tudo o que acontece. “Por ordenar todas as coisas, incluindo os atos pecaminosos, Deus não está pecando” (PIPER, 2014, p. 60,61). Ele faz referência, na página 61 de seu livro, a Jonathan Edwards, que um dia afirmou: “Não é uma contradição supor que um ato possa ser mau e que, apesar disso, seja uma coisa boa que tal ato aconteça... Como, por exemplo, crucificar a Cristo foi uma coisa má, porém também foi uma boa coisa que a crucificação de Cristo tenha acontecido”.

Usar a cruz como exemplo de que algum bem pode ser originado de algo mau não faz sentido. A cruz não é um modelo de interpretação para maldades cometidas. Na cruz temos uma revelação bíblica do seu real significado, esse significado, porém, não pode ser transposto para outros acontecimentos. Foi um momento decisivo na história e não um paradigma para eventos maldosos. Atos 4.24-30 nos diz como o evento da cruz deve ser entendido, mas não é uma descrição de como todos os acontecimentos ocorrem. Usaríamos a linguagem de At. 4.24-30 para descrever um assassinato, estupro e outras maldades humanas desmedidas? Penso que não. Mas infelizmente o que ocorre é o contrário.

Certa vez, um cristão que se encontrava em depressão, jogou-se debaixo de uma caçamba. Fui chamado para levar a palavra no culto fúnebre. Mas de última hora trouxeram um pastor de outra cidade. Lembro que ele disse em seu sermão: “Deus levou fulano para que a família viesse a se converter”. Como? Deus o jogou, ou decretou que ele se jogasse debaixo de uma caçamba para converter os familiares? E se os familiares não se converterem? Será que a tragédia de um justifica a felicidades de outros? C. J. H. Wright nos ajuda nesse ponto: “A Bíblia simplesmente não negocia com o mal. A Bíblia não coloca o mal na prateleira das realidades aceitáveis, como muitas visões religiosas fizeram e fazem. O mal não é “simplesmente como as coisas são”. Nunca é “para o bem de todos, no final” (WRIGHT, 2011, p. 69).

Quando lemos Ef. 1.11, temos a impressão que tudo o que acontece faz parte da vontade de Deus, anulando, assim, os questionamentos desse post. Podemos, no entanto, ver o texto de outra forma: Deus faz tudo de acordo com sua vontade, mas nem tudo o que acontece faz parte da vontade de Deus. O texto quer dizer que Deus age por liberdade e não por necessidade. A questão não está em tudo o que acontece, mas em “todas as coisas” que Deus faz.

Dizer que tudo o que acontece ocorre para a glória de Deus, como faz alguns teólogos, é tornar a glória divina numa moeda muito cara de ser negociada. Não há glória oriunda da maldade. A glória de Deus não se sustenta da dor de pessoas arrasadas pelo mal. A luz irradiada dessa glória seria o mesmo que o jogo de luzes que ocultam os truques dos ilusionistas, no caso de Deus (ou desse Deus), serviria, apenas, para ofuscar a imagem aterradora do mal.

REFERÊNCIAS:
 
BRUNNER, Emil. O Escândalo do Cristianismo. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.
ERICKSON, Millard J. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997. 
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
PIPER, John. Deus Deseja Que Todos Sejam Salvos? São José dos Campos: Editora Fiel, 2014.
WRIGHT, C. J. H. O Deus Que Não Entendo. Viçosa, MG. Ultimato, 2011.  

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