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terça-feira, 3 de junho de 2014

LEITURA VICIADA, PARTE 2 - LEVADO OU DEIXADO?

Neste post iremos abordar o conhecido texto de Mt. 24.40,41. Este será nosso segundo texto comprobatório de interpretação que precede a leitura no meio protestante. A passagem em questão é bastante conhecida entre os evangélicos. Uniforme também é o entendimento do texto: a pessoa que é levada é o crente e a deixada, o descrente quando do arrebatamento da igreja. Posso afirmar que nove entre dez evangélicos entendem o texto desta forma. Embora este dado não seja fruto de um estudo de caso, é o resultado empírico da surpresa estampada no semblante das pessoas quando expus algumas vezes outro significado alternativo para este texto.

Mateus 24 constitui um relato apocalíptico. É um capítulo com gênero literário próprio. É consenso entre os eruditos do Novo Testamento que Mateus fez uso do texto existente no evangelho de Marcos (Mc. 13) e o ampliou com material novo. Joachim Jeremias em Teologia do Novo Testamento faz um acurado estudo deste fato. Não faz parte do objetivo deste artigo analisar essas semelhanças e dessemelhanças nos dois relatos, mas sim sua tão conhecida interpretação já relatada anteriormente.

Qual o motivo de tantos evangélicos defenderem a mesma interpretação para este versículo? A resposta se acha no século XIX com os escritos de John Nelson Darby. Ele defendia que a volta de Cristo se daria em duas etapas, uma secreta, antes da Grande Tribulação e outra visível, após os eventos da Grande Tribulação. No Brasil a Bíblia de Estudo de Escofield popularizou este ensino de tal forma que muitos o defendem sem ao menos saberem sua origem.

A grande maioria dos cristãos transferiram para esta passagem a doutrina do suposto (isto para mim que não a defendo, mas evidente para os adeptos deste ensino) arrebatamento secreto defendida pela escola iniciada por John N. Darby. Logo, passou-se a interpretar que aquele que é levado seria o crente no momento do arrebatamento ou desaparecimento pouco antes do início da Tribulação, como descrito na série Deixados Para Trás que também virou obra cinematográfica. Isto não quer dizer que a escola iniciada por Darby interprete o texto dessa forma. Basta lermos a obra de J. D. Pentecost, Manual de Escatologia, para confirmarmos isto. Este afirma que o discurso apocalíptico de Jesus diz respeito somente a Israel e não a igreja.

Entretanto, o renomado estudioso do Novo Testamento, Charles Dodd, em seu livro As Parábolas dos Reino, ao observar esta passagem diz que não “está claro quem tem melhor sorte: o que é tomado ou o que é deixado”. (DODD, 2010, p. 76). Qual o valor desta observação para nosso estudo? Esta análise serve como princípio limitador de uma hermenêutica que se ufana em afirmar como sendo evidente a interpretação desta passagem, mantida, infelizmente, pelo imaginário evangélico popular.

Embora Dodd não afirme a situação de quem é deixado ou levado, expõe, por outro lado, a natureza da narrativa. Acertadamente ele diz que “o acontecimento em questão será o dia do Filho do Homem, que trará um juízo seletivo sobre os indivíduos...” (DODD, 2010, p. 76, grifo nosso).

Temos que interpretar os termos um será levado e outro deixado tendo em mente este juízo como contexto modelador de toda a narrativa mateana. Logo, a chave para o entendimento dos versículos 40 e 41 são os versículos 37-39. Jesus faz uso, aqui, do Dilúvio como evento explicativo para o futuro acontecimento condenatório descrito em seu sermão apocalíptico. É dito claramente que como “foi nos dias de Noé, assim também será na vinda do Filho do Homem”. Faz-se necessário agora uma pergunta: quem foi levado pelas águas do Dilúvio? Noé e sua família ou as demais pessoas e animais? Aqueles que conhecem a história bíblica dirão a segunda opção.

Chegamos aqui no limiar de nossa exposição. Se as águas do Dilúvio levaram toda a população da época de Noé, exceto ele e sua família, qual a identidade daquele que será levado nos versículos 41,42? Só poderá ser o descrente quando do juízo condenatório provocado pela segunda vinda de Jesus. Podemos ver com isto que a passagem em questão não aborda o arrebatamento mas sim o juízo do último dia.

É bem verdade que os termos usados nos versículos 39 (levou a todos) e 40 (um será levado) não são os mesmos. Todavia, isto não pode ser usado para se dizer que aquele que é levado em Mt. 24.40 teria um sentido positivo, sendo com isto distinto do significado negativo de Mt. 24.39. O sentido de uma palavra, entretanto, não pode ser obtido somente com o estudo de seu significado etimológico, mas sim pelo contexto da passagem em que o termo se encontra. D. A. Carson, em Falácias da Interpretação Bíblica já explicou o equívoco deste pressuposto metodológico. Logo, mesmo os termos sendo distintos, o contexto da passagem lhes confere o mesmo significado pretendido pelo autor. Ser levado ou tomado, é ser apanhado pelo juízo, assim como no dilúvio, e ser deixado é a forma de se descrever que outros escaparão ilesos desse julgamento, da mesma forma que Noé e sua família. A passagem de Ap. 14.14-20 serve como texto correlato para Mt. 24.40,41. 

Devo admitir que não pretendo trazer a última palavra sobre este texto, encerrando assim qualquer discussão. Contudo, permitamos que a Bíblia nos diga aquilo que o autor pretendia dizer e não aquilo que achamos que ele tenha dito por influência de nossas lentes doutrinárias.