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domingo, 22 de janeiro de 2017

GÊNESIS 1-2, UMA RELEITURA

A história de Adão e Eva é do conhecimento de todos os judeus, cristãos e boa parte de não cristãos. É quase um patrimônio religioso-cultural da humanidade. Ouvimos sua narrativa na igreja bem como seu escárnio das vozes do assim chamado novo ateísmo. Nossa intenção com esse post não é reafirmar o que já se diz ao longo do tempo sobre Adão e Eva (que eles foram o primeiro casal da terra), nem tão pouco rebater as críticas ateístas sobre essa parte da Bíblia (que ela seria um mero mito destituído de fundamentação histórica), mas sim, permitir que o texto nos fale de uma nova maneira. 

É preciso dizer, em primeiro lugar, que essa releitura vem sendo feita por teólogos como Derek Kidner, John Walton e N. T. Wright, logo, não há nada de original nesse artigo, exceto o ordenamento das ideias desses estudiosos. Em segundo, continuo acreditando na autoridade da Bíblia bem como na criação da humanidade como ato criativo de Deus, ou nas palavras do renomado teólogo batista do séc. XIX, A. H. Strong: “As Escrituras, por um lado, negam a ideia de que o homem é um simples produto das forças naturais irracionais. Elas ligam a sua existência a uma causa diferente da simples natureza, a saber, é um ato criativo de Deus”. 

A leitura comum (não que seja errada) é vermos Adão e Eva como os primeiros e únicos humanos no início dos capítulos 1-3 de Gênesis. Mas é possível que tenhamos em Gn. 1.26 a criação de pessoas em massa, ou de uma humanidade geral e não de dois indivíduos particulares, Adão e Eva no nosso caso. O hebraico Adan (Adão) significa humanidade, bem como nome próprio. Na estrutura da criação, Deus cria um incontável número de animais e logo os abençoa com a dádiva da procriação (Gn. 1.20-27), o mesmo podendo ter ocorrido com o gênero humano.

Adão e Eva seriam neste caso, possíveis descendentes do grupo humano original de Gênesis 1.26. Em Gênesis 2 eles foram escolhidos como representantes da humanidade formada, ou seja, eles entram na história em um mundo já povoado. Adão e Eva são os únicos colocados no jardim do Éden com uma espécie de função sacerdotal. Uma função sagrada num espaço sagrado. Por meio desse casal os propósitos do Criador irradiariam por toda sua criação, a terra seria levada a sua verdadeira frutificação, se encher do conhecimento do SENHOR como as águas cobrem o mar. Através desse lugar e por meio desse casal a vida do Criador irromperia trazendo ordem, paz e justiça. A desobediência traria a morte, o caos, a desordem, tanto para sua descendência quanto para seus contemporâneos fora do jardim. 

Logo de cara surgem algumas dúvidas: se Adão não foi o primeiro homem criado, então nem todos são descendentes dele. Respondemos dizendo que a única descendência preservada na terra foi a de Adão e Eva. Os demais humanos presentes no grupo inicial criado em Gn. 1.26 teriam chegado ao fim com o dilúvio. Essa seria a razão de Gn. 3.20 falar que Eva seria a mãe de toda a humanidade. Outra objeção seria dizer que se Adão não foi o primeiro homem criado, teríamos que admitir que houve uma classe de pessoas sem pecado. Não necessariamente. O pecado é mais que uma questão de hereditariedade, mas sim de solidariedade. Adão é o representante de todos, desde seus contemporâneos aos seus descendentes. Somos o que somos em decorrência de Adão, da mesma forma que somos quem somos em decorrência de Cristo. Jesus é o arquétipo, aquele que nos representa, alguém que consertou o erro do primeiro arquétipo, Adão. 

Mas se Adão não foi o primeiro homem criado, como entender que Deus o formou do pó da terra (Gn. 2.7)? Não é preciso interpretar literalmente essa passagem. Pode ser uma metáfora para descrever que assim como Adão, todos nós somos formados por Deus, somos frágeis (pó da terra). Uma linguagem semelhante pode ser vista em Jó. 10.8; Sl. 119.73; 139.13. Não se pressupõe dessas passagens que o autor não tenha sido formado por meio de um processo biológico normal, somente porque usam termos como: “tuas mãos me formaram”. Adão foi sim um personagem histórico, mas sua narrativa encontra-se em linguagem mitificada, metafórica.

Sim, tudo bem, mas como entender a formação da mulher segundo essa posição (Gn. 2.21,22)? Podemos afirmar que é o mesmo quando se diz que Deus formou o homem do pó da terra, ou seja, linguagem metafórica. O sono profundo em que Adão se encontrava se enquadra muito com o sono profundo de Abraão em Gn. 15.12s, momento em que o patriarca recebe uma revelação de Deus. O sono profundo de Adão, ou seja, a informação dada por Deus de quem seria Eva, bem como o tomar de uma de suas costelas, seria uma forma de dizer que foi Deus quem preparou, escolheu por esposa uma mulher para Adão.

Essa leitura de Adão e Eva não suscita somente dúvidas, ela esclarece alguns problemas no texto de Gênesis. Muitos perguntam quem teria sido a esposa de Caim (Gn. 4.17)? A resposta, para alguns, está em afirmar que Caim casou com uma de suas irmãs, semelhante a dinastia Targaryen das Crônicas de Gelo e Fogo. É certo que Adão e Eva tiveram filhas (Gn. 5.4) mas o texto de Gn. 4.17 pressupõe que Caim já se encontrava casado, e segundo Gn. 5.4, uma filha de Adão e Eva só foi gerada depois do nascimento de Sete. Outra possibilidade é admitir que Adão e Eva não estavam sozinhos, e que Caim casou com alguma dessas pessoas. Se não havia outras pessoas além de Adão e Eva, qual o motivo de Caim pensar que se alguém o encontrasse poderia vingar o sangue de seu irmão Abel (Gn. 4.14)?

Além do mais, os vestígios de vida humana parecem ser mais antigos que o estilo de vida descrito em Gênesis 4. Há indícios do surgimento de cultura datadas de 30.000 a 40.000 anos, enquanto o estilo de vida de Gn.4, criação de animais e agricultura, pertencem ao período neolítico, 8.000 a 10.000 anos atrás. Temos um lapso de tempo de 20.000 a 30.000 anos, se Adão foi o primeiro homem criado e Caim o primeiro agricultor. A não ser que Adão seja mais próximo a nós que os humanos iniciais de Gn. 1.26. 

Por último, a visão de Adão e Eva como pessoas escolhidas em benefício dos demais faz parte do fio condutor presente no quadro narrativo do Antigo Testamento com a escolha de Abraão. A vocação conferida a Adão e Eva é reafirmada em Abraão (Gn.12) da seguinte forma: Deus escolhe Abraão para ser o veículo por meio do qual a benção de Deus alcançaria todos os povos, da mesma forma que a obediência de Adão e Eva abençoaria toda a criação. Abraão recebe a promessa de que seria pai de uma multidão, da mesma forma que Adão e Eva gerariam sua descendência exercendo a ordem de multiplicar-se. Abraão recebe a promessa de herdar uma terra onde Deus habitaria com seu povo, no caso de Adão e Eva, o paraíso, onde se encontravam desfrutando da presença de Deus. A família de Abraão, em caso de infidelidade à aliança, seria expulsa da terra, indo ao exílio. O mesmo destino de Adão e Eva, que por desobediência foram expulsos do jardim. Abraão e sua família foram chamados para desfazer o erro de Adão, mas eles também incorreram na mesma falha. Deus suscita um israelita fiel, Jesus, descendente de Abraão, ou como disse Paulo, o segundo Adão, que desfez o erro do primeiro, cumprindo a promessa de que todos os povos da terra seriam abençoados.

Essa é uma possibilidade de releitura, um acréscimo ao entendimento comum sobre Adão e Eva, e não o seu substituto, afinal de contas, “teologia se escreve a lápis”.