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quinta-feira, 7 de março de 2019

CASAMENTO DE CAIM

Quem foi a esposa de Caim? Afinal de contas ele se casa logo depois que assassinou seu irmão Abel. Mas como isso poderia ser possível se não havia mais ninguém para casar? Bem, essa é uma das questões intrigantes da antiga narrativa bíblica dos primórdios. 

Para início de conversa, o texto (Gn.4) parece descrever uma época que se aproxima muito do período neolítico, 8.000 a 10.000 a.C., caracterizado pela domesticação de animais e desenvolvimento das técnicas de agricultura. Note que Abel é pastor de ovelhas e Caim agricultor. Outra coisa que precisa ser notada é que o texto não nos diz que Caim e Abel eram solteiros. Como assim? Publicamos um texto sobre a releitura de Gênesis 1 e 2, onde vimos a possibilidade de haver uma lacuna de tempo entre a criação do homem inicial em Gênesis 1, e o personagem histórico Adão que foi escolhido juntamente com Eva para entrarem no jardim como representante dos demais seres humanos. Se isso for certo, fora do jardim já havia pessoas. Calma, não pare a leitura com medo de ser uma heresia. Vá em frente!

Pois bem, Caim e Abel nascem fora do Éden. Mas porque deveríamos admitir que eles já fossem casados? Pelo questionamento de Caim logo após o assassinato de seu irmão: “... qualquer que me encontrar me matará.” (Gn. 4.14). Isso pressupõe um núcleo familiar maior além de Adão e Eva. Algum membro da família de Abel poderia buscar vingar-se, preservando com isso a honra da família, algo comum no mundo antigo. Sobre isso indico a consulta do Comentário Histórico Cultural do Antigo Testamento. Isso contraria nosso imaginário em ver Caim e Abel como muito jovens ou mesmo solteiros. Não se pode esquecer que o nascimento de Sete, após o assassinato de Abel, se deu quando Adão contava com 130 anos (Gn. 5.3). Isso quer dizer que Caim quando do assassinato do seu irmão deveria ter mais de cem anos de idade. 

Quando alguns leitores perguntam como Caim encontrou sua esposa quando fugiu, na tentativa de desmerecer o texto bíblico (Gn. 4.17), isso não passa de desatenção. Quando se lê que Caim conheceu sua mulher, não quer dizer que ele encontrou alguém que se tornou sua esposa. O mesmo se acha em Gênesis 4.1,25 sobre Adão conhecer Eva. É obvio que Adão já sabia quem era Eva. O texto afirma que Caim teve relações sexuais com sua esposa. O termo conhecer em hebraico é usado para expressar relação sexual. Logo, Caim não encontra uma esposa, o que seria possível, desde que se admita a existência de pessoas além do seu núcleo familiar, mas sim que já tinha uma esposa. Se as únicas pessoas que existiam era o núcleo familiar de Adão e Eva, então Caim já era casado com uma de suas irmãs, algo semelhante a dinastia Targaryen de As Crônicas de Gelo e Fogo. Lembre que Adão teve filhos e filhas (Gn. 5.4).

Quando se tenta responder esses questionamentos algumas pontas são amarradas e outras desatadas, levando, necessariamente, a mais indagações. O certo é que Gênesis não tem a intenção de ser um relato histórico moderno, muito menos um texto científico, mas sim religioso. Sua intenção é teológica, logo, determinados detalhes que podem parecer uteis ao leitor de hoje, foram considerados irrelevante para o que se desejava comunicar.

terça-feira, 5 de março de 2019

IGREJA, FAMÍLIA OU RODA DE AMIGOS?

Quando perguntamos sobre as bases que sustentam um grupo de amigos, podemos elencar os seguintes critérios: preferências equivalentes, idade aproximada, afeição mútua, decisão voluntária para ser amigo de alguém, afinal de contas ninguém é amigo por obrigação. Uma família, por sua vez, possui uma realidade distinta: idades diferentes, pois temos avós, pai, mãe, irmãos, tios, primos, preferências na maioria das vezes nem um pouco análogas e por fim, não decidimos quem deve ser nosso parente, eles, como em um passe de mágica simplesmente aparecem.

Ao prestarmos atenção na escolha que Jesus fez dos Doze apóstolos, notamos facilmente que ele formou um barril de pólvora (Mc.3.13-19). Isso porque em seu grupo havia um cobrador de imposto, Mateus (alguém, no mínimo não muito desejado), pescadores (bem provável que prejudicados em sua profissão por pessoas como Mateus), um zelote, que se entende como alguém disposto a agir com violência diante de um exemplo de infidelidade à lei de Moisés. Enfim, ou Jesus tinha o que se chama de dedo podre para escolher pessoas, ou ele queria nos mostrar algo. 

O grupo dos Doze tinha tudo para dar errado, com uma única exceção, a presença de Jesus. Não fosse por Jesus eles nunca poderiam pertencer ao mesmo grupo. Sua unidade estava para além de uma roda de amigos, era uma unidade familiar. Eles deveriam se relacionar com pessoas que por sua própria iniciativa nunca iriam conviver. Se Jesus tivesse dado a opção para alguns dos Doze escolher outros integrantes teríamos um grupo de amigos, pois a escolha seria movida por afinidades. Mas como a escolha coube unicamente a Jesus, o critério da afinidade não foi levado em consideração. 

A igreja atual é a continuação dessa escolha inicial feita por Jesus, uma escolha que redefiniu o que era ser povo de Deus. Hoje é muito comum segmentarmos a igreja em grupos de crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos. É claro que um trabalho direcionado para cada faixa etária é sadio e surte bons efeitos ao longo do tempo. Contudo, se numa igreja as pessoas se relacionam somente com as mesmas de sua faixa etária, ou que possuem as mesmas preferências, essa comunidade deixou de ser uma família e se tornou uma roda de amigos. Se uma igreja possui uma fé com identidade jovem, ou mesmo adulta, essa não é a fé cristã. O que caracteriza uma igreja é a sua identidade de fé intergeracional.  

Nos esquecemos facilmente que os dois grupos mais antagônicos do primeiro século, judeus e gentios foram unidos numa única comunidade, algo impensável na época, somente porque a cruz de Cristo fincada no chão de nosso mundo iniciou o processo de transformação de todas as coisas. Ou a cruz de Cristo aboliu qualquer muro de separação (inclusive o da idade) ou não derrubou muro nenhum (Ef. 2.11-18). Como já foi dito, não precisamos do evangelho, muito menos do poder de Deus para unir pessoas por afinidade, pois isso pode ser encontrado em qualquer lugar fora da igreja. Em uma época cheia de poderes que buscam nos segregar de todas as formas, a união de gerações que não têm afinidade alguma é uma demonstração poderosa de que Jesus é Senhor e que o reino de Deus foi inaugurado na terra como no céu.