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domingo, 27 de novembro de 2016

O EX-REGENTE DO CORAL NO CÉU?

Quem nunca ouviu falar que antes da queda o diabo era regente do coral no céu que atire o texto de Ezequiel 28.13. Não posso precisar em qual momento esse pensamento viralizou no inconsciente coletivo dos cristãos evangélicos, mas é inquestionável a sua influência na vida de muitos deles. Ellen G. White afirma essa ideia em algum de seus escritos, sendo possível encontrar aí o epicentro responsável pelos tremores dessa ideia que derrubou os muros do bom senso teológico da mente de vários evangélicos. 

Para alguns comentadores, encontra-se no capítulo 28 de Ezequiel duas personalidades. Dos versículos 1-10 teríamos o governante de Tiro, mas a partir de Ez. 28.12-19 o profeta estaria descrevendo a carreira do diabo, pois, segundo esses expositores, os termos usados não poderiam se aplicar a nenhum rei humano. 

Sobre ter sido o diabo antes da queda o regente do coral no céu, o versículo usado seria o 13b, onde se diz que os tambores e pífaros foram feitos quando da criação desse querubim. Aí já deu para perceber a associação. Sim eu sei, os anjos cantam (e como cantam no céu), mas dizer que o diabo antes da queda regia o coral lá, é ir além da mensagem bíblica. Outras versões preferem traduzir tambores e pífaros por engastes e guarnições (NVI) pois o termo faria mais sentido à descrição desse querubim revestido de pedras preciosas (v.13a), semelhantes ao do peitoral do sumo sacerdote (Ex. 28.17-30). O que se pensa ser um tamborim (Versão Revista e Corrigida), na verdade seria o suporte para fixar essas pedras em sua roupa.

Mas ainda que não exista base para se afirmar essa suposta regência no céu, o texto faz referência ao diabo? Novamente a resposta é negativa. Não faz sentido dizer que porque Ezequiel chama o líder de Tiro de príncipe (v. 1) e depois de rei (v. 12) teríamos dois personagens distintos, o primeiro homem e o segundo um ser angelical. Podemos ver que o rei Zedequias podia ser chamado de príncipe comparando o texto de Jr. 21.1 com Ez. 12.10, o que prova serem termos intercambiáveis. 

Faz mais sentido ao texto entender que do início ao fim do capítulo 28 Ezequiel esteja falando somente do rei e da cidade de Tiro. O rei é confrontado com sua própria autodeificação ilusória. O profeta já tinha feito isso com a própria cidade de Tiro no capítulo 27. A cidade era uma potência marítima, cuja glória durou do 12º ao 6º a.C. Em seu porto circulava as mercadorias de todas as nações. Por isso Ezequiel compara a imponente cidade a uma grande embarcação (Ez. 27.1ss), mas que em breve naufragaria (vs. 25-36). 

Para o rei de Tiro, tanto sua riqueza acumulada quanto sua sabedoria diferenciada eram vistos como seu marcador de identidade divina (Ez. 28.1-5). Sentia-se um deus sentado num trono invencível. Por causa disso, o verdadeiro Deus traria estrangeiros inimigos pondo à prova sua divindade (vs. 6-10). Diante de sua própria mortalidade sua humanidade seria exposta e sua divindade desmascarada (v.9). 

A partir do versículo 12, a linguagem de Ezequiel muda drasticamente. Assim como para se fazer uma curva um veículo deve diminuir sua velocidade, senão ele continuará em linha reta, o mesmo se dá nesse ponto do texto. Temos que desacelerar nossa leitura, pois do contrário bateremos no muro que interpreta esses versículos como uma referência ao diabo. O texto de Gênesis 3 não nos diz que no Éden havia um querubim, mas que foram colocados querubins como medida de proteção para a árvore da vida (Gn. 3.24). Da mesma forma, lemos que o tentador foi uma serpente, um animal criado, e não um ser angelical (Gn. 3.1). É claro que hoje sabemos que o diabo estava envolvido, mas não podemos pensar que Ezequiel tivesse essa leitura do texto de Gênesis. Além do mais, em Gênesis vemos a presença do tentador no Éden, um ser já corrompido, mas nunca nos diz, nem em nenhum outro lugar das Escrituras, que esse tentador foi algum dia um querubim (cf. Ap. 12.9). 

O que nos resta dizer então é que Ezequiel passa a descrever o rei nos termos de sua própria divindade, descrito em linguagem celeste, não porque era divino, mas porque se imaginava assim. Penso que Ezequiel faz isso usando termos de sua própria tradição judaica bem como de alguma fábula conhecida entre os seus contemporâneos: Éden é o termo acadiano edinu, que significa planície; querubim ungido pode lembrar os querubins acima da arca; monte santo é o lugar da habitação de Deus como atestam os textos de Sl. 43.3; 48.1,2; Ez. 20.40, havendo até mesmo uma associação com o monte Zafom, montanha mítica para os fenícios (Sl. 48.2), lugar da habitação dos deuses. Temos então uma história mítica, ambientada na narrativa de Gn. 2 e 3, que fala de um ser celeste primitivo, ideal, belo, sábio, rico, mas que por seu orgulho foi expulso do jardim de Deus, ou monte santo (qualquer semelhança é mera coincidência com o imaginário popular da queda do diabo). 

O que Ezequiel diz para o rei de Tiro nos versículos 12-19 é o que já havia alertado nos versos 1-10. Ao confrontar o homem que julgava ser deus (vs. 1-10), Ezequiel diz que inimigos o enfrentariam, agora, falando com o rei como se ele mesmo fosse divino (vs. 12-19), é o próprio Deus quem o enfrentará (v. 16). O lamento que Ezequiel deveria entoar (v. 12) torna-se, na verdade, um cântico irônico.