Recentemente fiz a leitura de Daniel 10.13,20 e uma espécie de reminiscência questionável me veio à mente: existem mesmo anjos/demônios territoriais? Rapidamente fui consultar meus livros de teologia, que infelizmente são poucos, e para minha surpresa eminentes teólogos respondiam de forma positiva a minha dúvida. Entre os gigantes da teologia que se pode inferir de seus escritos a ideia de anjos com domínios territoriais estão: Augustus Hopkins Strong, batista, e Charles Hodge, presbiteriano. Deve-se ressaltar quem ambos são teólogos conservadores.
Em Strong, no volume I, página 661 de sua Teologia Sistemática, a ideia de anjos territoriais encontra-se implícita. Já em Hodge o ensino é expressamente admitido. Primeiro ele afirma que muitos comentaristas ao longo da história da igreja adotaram “a opinião de que a certos anjos foi confiada a supervisão especial de determinados reinos”. (HODGE, p. 476). Mesmo concordando que é impróprio afirmar um ensino baseado em um único texto das Escrituras, Hodge faz a seguinte assertiva: “Embora tal coisa deve ser admitida, é não obstante certo que a interpretação ordinária da linguagem do profeta (anjos territoriais) é a mais natural, e nada há na doutrina assim ensinada que fique fora da analogia com os claros ensinos das Escrituras”. (HODGE, p. 477).
No entanto, a postura de Hodge não é correta. Isto por um motivo bastante simples. Se a interpretação de um texto me induz a uma ideia que não pode ser sustentada alhures nas passagens da Bíblia, uma exegese saudável seria admitir a natureza obscura da passagem. Ainda que se usasse o argumento de que não deixamos de acreditar no relato da torre de Babel (Gn. 11.1-9) mesmo aparecendo somente em uma única passagem das Escrituras, seria um verdadeiro sofisma. Pois em hermenêutica não se admite formar doutrina em um único texto da Bíblia, mas não se diz que não devemos acreditar em um relato quando este aparece somente uma vez nas Escrituras. Não há uma doutrina da torre de Babel, antes, o que temos é um relato meramente histórico, não repetível, e por isso crível. Algo bem diferente do texto de Daniel 10.13,20 que não é usado como relato histórico, mas doutrinário, sendo a descrição, sustentada por alguns, da realidade atual de territórios sob o domínio de entes angelícos.
Não obstante, podemos entender o texto à luz do contexto religioso do mundo antigo. Os deuses eram vistos como entidades territoriais (veja 2Crônicas 28.23). O próprio Naamã, entendendo que o Deus de Eliseu era divindade local, desejou levar um pouco da terra de Israel para oferecer sacrifícios ao SENHOR em outro lugar (2Rs. 5.17). O sentimento era que cada nação possuía sua divindade particular. Basta lembrarmos que quando Israel estava avançando em suas conquistas, muitos diziam: “o Deus de Israel...”. Para eles era o Deus local de Israel que estava adquirindo o território para Seu povo. Território este, já de domínio de outra divindade. Leia o Sl. 24.1 e tire suas conclusões se existe algum lugar na terra que pertence a alguém senão o SENHOR (cf. Ex. 9.26).
Com isto em mente, propomos que Daniel 10.13,20,21 estaria simbolizando a invasão de um território que se supõe ser do domínio de outro deus. O SENHOR pode levar Sua mensagem mesmo em terras estrangeiras. Não haveria fronteiras para o Seu agir. Existe sim, no relato, um confronto de poderes, Miguel e o Príncipe da Pérsia. Mas afirmar que havia um anjo encarregado dos negócios da Pérsia, isto o texto não nos diz, tão pouco pode ser biblicamente sustentado.
Do acima exposto, seriam estas as implicações do texto. Ir além disto, é incorrer em ilações não sustentadas pela Escritura.